Maconha Medicinal


[TEXTO ESCRITO ANTES DA REGULAMENTAÇÃO DA ANVISA EM 2019]

Se você se assustou com a palavra maconha e medicinal juntas na mesma frase, talvez você precise rever alguns de seus conceitos. A maconha é uma planta que está envolvida em uma simbologia social e cultural que muitas vezes atrapalha a correta avaliação dos princípios medicinais da mesma. Vale a pena lembrar que a maioria das medicações que hoje são comercializadas pelas grandes indústrias farmacêuticas tiveram sua origem a partir de plantas encontradas em diversos biomas pelo mundo afora e o mesmo é evidente com a maconha.



Conhecida na botânica pelo nome de Cannabis sativa, a maconha já tem um excelente embasamento científico para a comprovação de seus efeitos medicinais. Há mais de dois mil anos ela já era usada para fins medicinais. Com o avanço científico do século 20 o pesquisador israelense Rafael Mechoulam, em 1965, isolou o elemento, delta-9-tetrahidrocanabinol-THC que possui efeito de relaxamento muscular e anti-inflamatório. Atualmente se sabe que podem ser extraídos da maconha podem ser extraídos mais de 100 tipos de canabioides sendo os principais: o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) que atuam no sistema nervoso e auxiliam no tratamento de diversas doenças crônicas.

O THC, é a molécula mais psicoativa da maconha, atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. Dentre os benefícios, produz efeito anticonvulsivo, anti-inflamatório, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além de ser usado também como analgésico e no tratamento para aumentar o apetite.

Pesquisas nos revelaram que o CBD é um importante analgésico, sedativo e anticonvulsivante. Já o THC age como antidepressivo, estimulante do apetite e como anticonvulsivante também. De acordo com esses efeitos sobre o organismo podemos tratar com o CBD doenças como: autismo, epilepsia, esclerose múltipla, esquizofrenia, mal de Parkinson e dores crônicas. Já com o uso de THC se pode tratar também o mal de Parkinson, a escleroso múltipla, Síndrome de Tourette, náusea induzida por quimioterapia, asma e glaucoma.

Os remédios estão surgindo em diversas formas, como óleos concentrados com canabinoides, óleos encapsulados, sprays, cremes tópicos e outras formas de acordo com a melhor estabilização do princípio ativo e melhor absorção pelo organismo.

Vejamos com alguns desses princípios ativos agem no tratamento de algumas doenças:

EPILEPSIA
O CBD aumenta a carga de anandamida em áreas da massa cinzenta. Ao se ligarem a receptores celulares, essas moléculas reduzem a super-ativação de circuitos nervosos, que acarreta as convulsões.

ANSIEDADE
Combinados, CBD e THC agem em duas frentes. O primeiro eleva a concentração de anandamida no hipotálamo, no hipocampo e na amígdala. O segundo, ativa os receptores para anandamida no córtex pré-frontal, na amígdala e no hipocampo.

ESCLEROSE MÚLTIPLA
Tanto o THC como o CBD participam aqui. Ao interferir em regiões que controlam a dor, bem como os movimentos (no cerebelo por exemplo), inibem a passagem dos impulsos que causam desconfortos, espasmos e rigidez muscular.

DOR CRÔNICA
O corpo tem receptores para os canabinoides tanto no cérebro como nos nervos periféricos. Ao se ligarem a eles em áreas específicas, as moléculas da maconha diminuem a transmissão dos sinais dolorosos.

Neste ponto, valem algumas ressalvas, a primeira seria que existem poucas medicações efetivas no tratamento de esclerose múltipla e com isso a chegada dessas duas novas substâncias amplia os horizontes de tratamento e a qualidade de vida de quem possui essa doença degenerativa do sistema nervoso. A segunda é que não existem relatos sobre mortes atribuídas a uma overdose de cannabis, tanto medicinal quanto recreativa, o que torna as medicações a partir dela desenvolvidas mais seguras e atraentes para prescrição clínica.

E aqui precisamos parar e construir um divisor de águas. Não está sendo discutido o uso da maconha em completo, em sua forma mais usual, conhecida popularmente como “uso recreativo”. Estamos falando de processos bioquímicos de extração de substâncias ativas da planta, passando por procedimentos laboratoriais de purificação, estabilização e dosagem. Tal como existe em remédios como o captopril – para controle da hipertensão arterial – que é retirado de veneno de cobras, porém não prescrevemos o uso de veneno para pacientes.

E para chegar à liberação para uso terapêutico dos princípios ativos da maconha esta deve submeter-se a uma série de procedimentos burocráticos, tanto científicos quanto administrativos, para que seja garantido a população o uso seguro e a correta comercialização em território nacional. Precisamos do envolvimento de laboratórios que façam o envasamento, numerem os lotes e se responsabilizem tecnicamente frente aos órgãos de controle sanitários e distribuam a medicação pelo país. Não é simplesmente liberar um cidadão a plantar um pé de maconha num vaso de planta no quintal de casa e usar como bem entender para tratar as doenças acima citadas. Isso não é uso medicinal da maconha.

Muitos dos opositores à maconha medicinal alegam que, ao se ampliar os estudos, o consumo “recreativo” também será estimulado desse modo favorecendo o tráfico e a escalada da violência. Essas falas estão carregadas de uma argumentação que serve mais para o medo e é um tanto quanto pueril pois o consumo recreativo se dá sem nenhum controle do estado há muitos anos. Somado a isso, já existem evidência e estatísticas que mostram que Estados que liberaram o comércio regulamentado da maconha obtiveram quedas nos níveis de violência social. O que é defendido é que os pacientes possam ter acesso as medicações que têm como base princípios ativos da maconha e se beneficiarem em melhora na qualidade de vida, sem ter que recorrer a justiça.

É interessante perceber que o preconceito sobre a planta vem determinando os rumos dos debates políticos/judiciários sobre os princípios ativos da maconha. Mas a qualidade de vida dos pacientes e o alívio para seus sofrimentos passam para segundo plano nessa rinha de egos.

Em 2015 dois compostos da maconha foram liberados com intuito de ampliar as linhas de pesquisa e beneficiar a população no Brasil. Em janeiro, o canabidiol-CBD saiu da lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de substâncias proibidas e em novembro, do mesmo ano, o THC também foi retirado por determinação judicial.

Desde 2017, a Anvisa também permite a produção e comercialização do Mevatyl (spray), medicamento indicado para adultos com rigidez muscular excessiva relacionada à esclerose múltipla, sendo que sua composição são os dois tipos de canabinóides derivados da maconha: o CBD e o THC.

Porém atualmente há uma guerra declarada entre evidências científicas e as apelações morais do atual governo federal brasileiro. Temos claramente divulgada a opinião do ministro da cidadania Omar Terra e do ministro da saúde Henrique Mandetta de serem contra o cultivo para pesquisa em território nacional. Também estes alegam que o uso teria que ser restrito a uma pequena parcela de doentes que não respondem à diversas tentativas de tratamentos. Outra alegação da atual administração federal é que há uma carência de estudos científicos com exímio rigor sendo realizados.

Já do outro lado desse campo de batalha temos na classe médica pessoas como o Dr. Ricardo Ferreira - Integrante da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED) - que afirma que a disputa de poder entre a classe médica e a ANVISA se intensificou. “Há fatores políticos. Há uma discussão grande entre o CFM e a Anvisa, uma rixa. E a Cannabis acentuou isso...”.

Muitos médicos não prescrevem o THC, tanto por desconhecerem o poder terapêutico da substancia quanto por preconceito associado. Isso é levantado como um fator limitador até mesmo para a importação da medicação. Novamente voltamos ao ponto chave da discussão: existe muita desinformação a respeito das possibilidades terapêuticas da maconha e muito preconceito ao redor da mesma.

No entanto, é preciso romper com o preconceito para avançar cientificamente para oferecer essa alternativa terapêutica aos pacientes.

Em termos de ciência existem estudos bem embasados e com evidências claras, mas talvez o problema seja um pouco mais profundo. Há interesses escusos, do capital, por traz de todo esse quadro de acusações. Construir um estudo sobre a maconha envolve custos financeiros altos e que não são compatíveis com o, ainda baixo, retorno financeiro da maconha medicinal. “Esses estudos são extremamente caros. São milhões de dólares. Envolve o pagamento de várias pessoas, tem que fazer uma cobertura de saúde se essas pessoas tiverem algum problema a respeito do medicamento. Como irá se fazer um estudo usando uma planta que não dá todo esse retorno, para explicar se ela funciona ou não? Porque uma planta, como a maconha, você não pode patentear”, destaca o Dr. Ferreira. Ou seja, temos uma substância muito eficaz no tratamento de certas doenças, porém o lucro advindo de seu uso ainda não é o esperado pelo mercado. Deste modo a pressão da indústria farmacêutica não atua em com tanta força em favor do comércio das substâncias derivadas da maconha, o que seria um grande aliado para se enfrentar o pensamento retrogrado dos administradores públicos do sistema de saúde e do governo federal.

Fica claro que há muito preconceito envolvido nessas discussões e que quem sofre no final é o doente que já é obrigado a contar com um sistema de saúde sucateado e muitas vezes inoperante e a ficar refém de tratamentos caros e que não agem por completo no alívio do sofrimento.

Soma-se a esse quadro um fator complicador, cada vez mais vemos a judicialização da saúde. Não é incomum que pacientes, pais e parentes acionem a justiça para terem seus direitos ao tratamento preservados. Dessa forma, ao entrarem com um processo judicial os portadores de doenças conseguem liminares que lhe asseguram o tratamento e obriga o Estado a arcar, de forma compulsória com o tratamento. É dessa foram que muitos pacientes têm alcançado acesso à maconha na forma medicinal.
Além de terem que enfrentar um complicado e longo processo burocrático, pacientes que optarem por importar esses medicamentos terão que arcar com um custo custam mensal entre R$ 2.000 e R$ 15.000, o que impede que a maioria das pessoas que precisam consigam comprá-lo. Logo fica mais fácil acionar a justiça e obrigar o Estado a arcar com essas despesas.

Só em 2015, o Ministério da Saúde foi obrigado a importar canabidiol para cumprir 11 mandados de segurança que beneficiaram 13 pessoas gastando R$ 462 mil reais. A consequência disso é que o judiciário acaba sendo invadido por pedidos de habeas corpus preventivos e tendo que exercer um papel de decisão, que lhe é possível, mas que deveria ser exercido pelo legislativo e o executivo que se tornaram omissos.

A comunidade cientifica continua seu caminho pesquisando e procurando evidências no uso das substâncias ativas presentes na maconha.

Internacionalmente temos notícias recentes da França que iniciou um projeto de pesquisa com mais de três mil pessoas. O projeto piloto financiará o tratamento com a cannabis, nesta fase inicial, para indivíduos que sofrem com dores neuropáticas, com alguns tipos de epilepsia, câncer, esclerose e com outras doenças do sistema nervoso central. O primeiro grupo de participantes começará a receber o tratamento com a cannabis medicinal a partir do primeiro semestre de 2020.

Já em território nacional, pesquisas em universidades como a Unifesp e UFRJ já estudam os extratos da maconha, apesar da dificuldade de conseguir a matéria-prima no país. Na Fiocruz, temos o Fio-Cannabis, que vai além de busca consolidar um principio ativo e pretende desenvolver um medicamento 100% de produção nacional. Para isso, em associação com projetos da UFRJ que analisam a composição dos extratos de maconha importados ou produzidos clandestinamente no Brasil, as duas instituições juntas buscarão construir um banco de informações sobre combinações já usadas por pacientes. Os primeiros ensaios clínicos, feitos pela parceria, vão focar pacientes com epilepsia, uma doença grave que a cada crise torna o paciente mais frágil do ponto de vista cognitivo.

Pesquisas assim, em território nacional, facilitam a produção da medicação e surgem com uma vantagem no custo total, uma vez que são produzidas a partir de matéria prima nacional e sem depender de taxas de importação e valores atrelados ao mercado financeiro e ao dólar. Além disso valorizam as linhas de pesquisas de nossas universidades e dão oportunidades ao desenvolvimento de ciência e pesquisa genuinamente brasileiros.

O futuro da maconha medicinal no Brasil hoje aguarda os tramites legais na Anvisa e os resultados das pesquisas que estão sendo realizadas. Muitas pessoas poderão ser beneficiadas com o uso medicinal da maconha e é nossa responsabilidade batalhar por isso. Diminuir o sofrimento de alguém é sempre um dos objetivos das pessoas de bem.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Liturgia de um Culto Familiar

HOMOSSEXUALIDADE E A BIBLIA #06 - CORÍNTIOS E TIMÓTEO: PROSTITUIÇÃO MASCULINA E DEVASSIDÃO

Quem você é quando ninguém está vendo?

SUPER CHOQUE

UNA MIRADA MÁS PROFUNDA A LA ORDENACIÓN DE LA MUJER #04: MARIDO DE UNA SOLA MUJER